- ANÁLISE GERAL DAS ALTERAÇÕES MAIS SIGNIFICATIVAS NO NOVO REGIME JURÍDICO DO DIVÓRCIO
Em jeito de intróito consideramos ser relevante, antes de realizarmos qualquer enquadramento técnico-jurídico do tema concreto, referir as mais relevantes alterações efectuadas face ao regime anterior pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro. A saber:
- O fim das relações de afinidade no caso de divórcio;
- Criação dos serviços de mediação familiar para resolução de conflitos;
- A eliminação da culpa como motivo para divórcio litigioso, o consequente aparecimento da figura jurídica do divórcio sem consentimento e as consequências a nível dos efeitos patrimoniais;
- As alterações na regulamentação do divórcio por mútuo consentimento (tendo como principal novidade a atribuição de competências ao tribunal no caso dos cônjuges não chegarem a uma solução quanto aos acordos complementares);
- Introdução de novas regras quanto à estipulação do exercício conjunto das responsabilidades parentais;
- Alterações no direito a alimentos entre ex-cônjuges;
- Finalmente, referente ao tema em exposição, a consagração de um crédito compensatório ao cônjuge que contribui de forma consideravelmente superior para os encargos da vida familiar.
Não menor importância terá tecermos algumas considerações históricas, religiosas, sociológicas e axiológicas sobre o assunto fulcral em questão: o casamento.
A evolução legislativa portuguesa acompanhou a tendência de secularização da instituição por força da pressão do quadro sociológico vigente no nosso país. De facto, a importância da religiosidade na actual sociedade diminui, não tendo obviamente ficado alheio o fenómeno de união entre duas pessoas (de sexo diferente refira-se) a esse fenómeno. A progressiva laicização da sociedade portuguesa, nomeadamente das instituições do estado e das leis, foi alterando o cenário dominador de uma determinada concepção religiosa sobre um Estado, que apesar de laico, permitia uma certa predominância religiosa sobre a vida em geral. Os interesses de domínio da res publica assim o ditavam. A ideia de indissolubilidade do casamento esbateu-se, tendo hoje os cidadãos a consciência de que não mais é necessário suportarem o que não querem como forma de compromisso com uma “sagrada” lei.
As constantes mutações sociais e do papel da família, concretamente do papel da mulher no tempos modernos ajudou que essas alterações se fizessem. Hoje a mulher não está amarrada a uma lei doente que impunha a submissão e obediência ao sexo dito dominador. Hoje as mulheres são donas de casa por opção e não por imposição. A sua independência económico-financeira ditou assim o mudar das regras. Não mais a mulher espera pelo regresso do sustento a sua casa, não estando por isso, consequentemente, submetida a um tratamento discriminatório e desigualitário que não raras vezes era imposto.
A mudança da concepção do casamento como instituição familiar também se alterou. Hoje e ao contrário do que ainda surpreendentemente se ouve veicular, o casamento não é uma união tendo em vista o exclusivo fim da procriação. Penso que nem qualquer lei divina poderia impedir a união entre duas pessoas estéreis, ou, por qualquer outra forma, impedidas de prosseguir ou quererem esse intento. Aliás, aqui não poderá de deixar de se abordar a questão do casamento homossexual porque cremos que não estará longe a consagração legal de tal direito, sem querermos entrar em qualquer espécie de análise sobre o tema que não a estritamente jurídica, mas, que por ser estranha ao caso em apreço dispensamo-nos de fazer.
O que nos leva a entrar na concepção do que se considera hoje a base fundamental onde o casamento assenta: o afecto. De facto as pessoas escolhem um(a) companheiro(a) pelo afecto. Tal desiderato não extirpa radicalmente o casamento efectuado pelo mero interesse. Essa concepção clássica que levava as pessoas a unirem-se ainda subsiste. Porém, grosso modo, é um facto que impera e quando este desaparece leva à causa do divórcio.
Não é também alheio a este fenómeno a uma galopante perspectiva da vida quase desprovida de um sentido ético e mesmo moral. O materialismo impera quase absolutamente. Uma concepção consumista onde de forma absolutamente trágica se arrasta também a níveis de quase total desrespeito pela dignidade da pessoa humana ao ponto de também esta ser consumível. Também o casamento sofre as consequências desta crise de identidade colectiva e social. Neste sentido a opinião do Dr. António Martins: “A realidade social é a da que os casais estão cada vez menos disponíveis para manter o casamento quando a relação afectiva se quebrou.”[1] Não sabemos ao certo se esta concepção perante o assunto é desejável, o que nos leva a debater a questão mais geradora de controvérsia em toda esta reforma. A questão da culpa.
Hoje quem não queira manter o casamento pode requerer desde logo o divórcio, alegando para tal o disposto na alínea d) do art.º 1781.º do Código Civil, onde se consagra o seguinte: “Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.” Ora, tal solução abre a porta a um qualquer argumento que deve ser considerado válido em qualquer tribunal, dado estarmos perante um tal ambiguidade e texto absolutamente desprovido de um conceito jurídico determinável. Qualquer contrato, seja ele pessoal, ou não, deve obedecer a regras elementares de respeito, sendo sancionado aquele que o incumprir de forma culposa, sendo que, no caso concreto do divórcio, tais sanções dever-se-iam determinar pela gravidade da situação concreta, como termos oportunidade de explanar de seguida. Esta saída é a porta escancarada para a resolução das pretensões do cônjuge que deseja o divórcio, independentemente dos motivos que o justifiquem e da responsabilidade dos seus actos. O que já por si poderá criar um problema, pela total arbitrariedade conferida ao magistrado em juízo na interpretação dos factos que são alegados. O legislador ao criar esta solução, mais do que desprover de sentido o conceito de culpa, subestima todas as outra soluções que servem de fundamento ao divórcio por se tornarem estrategicamente secundárias ou mesmo desnecessárias. É muito mais fácil encontrar uma solução para o problema através desta solução do que estar preocupado em reunir elementos de prova que, por exemplo, comprovem a separação de facto por um ano. Tanto que as consequências serão potencialmente as mesmas. A partir do momento em que se optou pelo desligar do processo de divórcio das consequências a nível patrimonial, tal passa de facto a ser indiferente. Conforme é referido por Cristina M. Araújo Dias: “Ao contrário do que acontecia anteriormente, o juiz nunca procurará determinar e graduar a culpa para aplicar sanções patrimoniais; afastam-se agora também estas sanções patrimoniais acessórias. As discussões sobre a culpa, e também sobre danos provocados por actos ilícitos, ficam alheias ao processo de divórcio.”[2] De facto, o julgamento em si da causa de divórcio encontra-se reduzido a quase nada, apenas restando a complexa, por constituir uma diabolica probatio, situação de exigir do outro cônjuge a responsabilidade por danos não patrimoniais sofridos no decurso do casamento. Não se entende bem a necessidade de continuidade de existência dos outros fundamentos, a não ser obviamente o fundamento da ausência do cônjuge, nos termos do disposto na alínea c) do mesmo artigo do C.C.
Ainda em referência ao fim do divórcio sanção e total eliminação da culpa, não podemos deixar de fazer referência ao parecer elaborado pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, que bem faz uma análise crítica ao facto de não ter sido consagrado um regime que distinguisse, como causa autónoma de divórcio, as situações de violência doméstica, ao contrário do que foi feito através da inclusão de uma espécie de subcategoria referente às causas objectivas do divórcio. Ou seja, em suma, na alínea d) do art.º 1781.º do C.C., cabem tanto as situações de fim de afecto que justificam a normalidade da ruptura da vida em comum de forma compreensiva e normal, como também uma situação em que estejamos perante uma grave situação de violência doméstica perpetrada contra o cônjuge, filhos, ou ambos. Não se entende o porquê desta posição legislativa perante um crime de tão séria gravidade, obrigando a arrastar as vítimas perante outro processo, em outro tribunal, perante outro juiz e com todas as custas que acarreta tal decisão, este último aliás, constitui outro dos argumentos a favor da tese que defende a consagração de um regime autónomo para essa situação concreta. Esta excepção processual que permitisse, além da discussão das questões de índole não patrimonial, analisar também a questão patrimonial como forma de sanção pela perpetração de actos bárbaros contra os mais indefesos, incluindo-se portanto dessa forma o conceito de culpa para essas situações excepcionais, que pela sua gravidade merecem um tratamento diferenciado. De referir que esta perspectiva aliada a um princípio de clean break, tem suscitado controvérsia, em termos de direito comparado, pelo facto de se constatar a posteriori, conclusões perfeitamente injustas.
Como foi afirmado pela já mencionada A.P.M.J. “… face ao princípio da unidade do sistema jurídico, não é possível afirmar que a violência doméstica é um facto ilícito – civil e penal – e não obstante incluí-lo no elenco das causas objectivas de divórcio, ou seja das que ocorrem independentemente de culpa, não constituindo assim um facto culposo. A não ser, naturalmente, que se considere que a vitimação por violação doméstica constitui, para as mulheres, um risco inerente ao casamento, sem culpa de ninguém…!”.
Em consequência do que foi exposto anteriormente a questão do divórcio per si revela-se pacífica aos dias de hoje. A concepção do casamento em si, enquanto figura religiosa, ou, como instituição familiar, esbateu-se e portanto a concepção restrita sobre as causas de divórcio vai cada vez mais dando lugar a uma facilitação desse processo. Aliás, tal tem sido o caminho da maioria das legislações dos países que constituem a União Europeia, com excepção por exemplo da França que depois da reforma legislativa ocorrida em 2005, manteve a culpa como fundamento de divórcio (cfr. artigos 229. e 242.º do Code Civile Française). É portanto pacífico doutrinariamente em termos jurídicos a sua ontologia. Como dizem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, a “questão do divórcio”, é hoje mais a dos seus efeitos, designadamente a da protecção aos filhos menores e ao ex-cônjuge que a dissolução do casamento tenha deixado em precária situação económica[3]. De facto assim o é. Perante o retrato das evidências, torna-se mais fulcral do que qualquer outro assunto, proteger quem acaba por sair mais lesado em todo este processo, em total acordo com o respeito pelo princípio da protecção dos mais fracos e a este propósito uma referência a Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, editora Coimbra.
Este é porém o assunto mais complexo face às alterações efectuadas e em vigor, conforme já pudemos constatar anteriormente. Levando-nos desta forma a analisarmos em concreto a questão central do tema apresentado.
- CRÉDITO COMPENSATÓRIO AO CÔNJUGE PELA CONTRIBUIÇÃO (CONSIDERAVELMENTE SUPERIOR) PARA OS ENCARGOS DA VIDA FAMILIAR – O TRABALHO DOMÉSTICO.
Sumariamente exporemos os motivos do projecto de lei n.º 509/X referentes a esta matéria, que está fortemente relacionada com o tema central a analisar: “O reconhecimento da importância decisiva para as condições de vida e equilíbrio da vida familiar dos cuidados com os filhos e do trabalho doméstico, é uma aquisição civilizacional recente que carece ainda de ser verdadeiramente incorporada, quer na realidade quotidiana quer na percepção política e jurídica.” Assim, …”o projecto de lei apresentado estabelece, nas consequências de divórcio, a possibilidade de atribuição de “créditos de compensação”, sempre que se verificar assimetria entre os cônjuges nos contributos para os encargos da vida familiar.”
É clara a intenção de protecção do cônjuge que opta pela protecção da vida familiar em detrimento de uma carreira profissional, ou outra. Nesta situação estão claramente em maioria as mulheres, apesar de apenas se fazer referência à situação concreta das mulheres que vivem essa situação. O que será justificável pela maioria das situações que se passa, porém, já se vai assistindo ao aparecimento do fenómeno de “donos de casa”. De facto, porém, são estas, na grandessíssima maioria dos casos, as mais sacrificadas nesta relação e são estas que, na maioria das situações, acabam por ficar desprotegidas e colocadas “…em desvantagem no plano financeiro.”, “…admite-se por isso que no caso de dissolução conjugal seria justo «que o cônjuge mais sacrificado no (des)equilíbrio das renúncias e danos, tivesse o direito de ser compensado financeiramente por esse sacrifício excessivo» (in, Guilherme Oliveira, 2004, Dois numa só carne, In ex aequo, n.º 10).
A nova lei consagra portanto uma forma de compensação ao cônjuge através da possibilidade de concessão de um crédito “…no momento em que se acertam as contas finais dos patrimónios.”[4]
De facto, tal alteração é da mais elementar justiça social, dado que, como já fora referido anteriormente, quem abdica da sua realização profissional em prol da protecção do seio familiar dedicando toda a sua vida a essa causa, fica desprotegido em termos financeiros, o que mais se agrava quando, perante o divórcio, os filhos ficam entregues ao cônjuge nessa situação.
Apesar da inovação, porém, poderá surgir um outro problema relacionado com a efectiva repartição de funções entre os cônjuges no decurso do casamento e que depois trará consequências ao nível do divórcio. Na maioria das situações cabe a um dos cônjuges, quase sempre à mulher, uma maior dedicação ao lar e à educação dos filhos. Conforme já analisamos a intenção da lei, nomeadamente através do art. 1676.º do C.C., é a valorização desse trabalho, bem como do trabalho profissional. Porém, como referem Pires de Lima e Antunes Varela[5], pode suceder que a contribuição efectiva de um dos cônjuges para tais encargos (em referência aos trabalhos no lar) seja superior à que lhe competia de acordo com o critério da proporcionalidade dos meios. É o que acontece na generalidade dos lares familiares onde a mulher, além de auferir um vencimento pelo seu trabalho fora do lar, e com ele contribuir para os encargos da vida familiar, realiza a maioria dois trabalhos domésticos e de educação dos filhos, contribuindo, assim, com mais do que devia para os referidos encargos. Com o regime anterior era estabelecida uma presunção de renúncia ao direito de compensação a exigir do outro cônjuge, o que eventualmente poderia resultar no empobrecimento de um perante cônjuge perante o outro. Com o sistema actual, consagra-se a possibilidade de corrigir essas situações de injustiça, principalmente tendo em conta quem renunciou à vida profissional.
- COMPENSAÇÕES E CRÉDITOS ENTRE CÔNJUGES
No casamento deve subsistir uma determinada ideia de um equilíbrio patrimonial entre cônjuges. Tal questão é extremamente complexa de aferir, essencialmente quando estamos perante situações em que um dos cônjuges seja detentor de uma massa patrimonial muito superior à do outro e que este esteja até numa situação de quase dependência económica deste. O que levanta a questão de saber se o cônjuge que nunca fez qualquer tipo de trabalho profissional na vida tem ou não direito a ser ressarcido de eventuais prejuízos que tenham resultado do casamento, no momento do divórcio. Apesar de não estar expressamente consagrado no art.º 1676.º do C.C. tal possibilidade, pensamos que o espírito da lei é o que conta e portanto entende-se que o espírito do legislador foi consagrar o direito a uma compensação ao cônjuge que contribui de forma consideravelmente superior que o outro para os encargos da vida familiar e tendo daí decorrido um sério prejuízo para este. O objectivo da lei é evitar um empobrecimento de um dos cônjuges nesta situação ao momento do divórcio.
Voltando à concretização do tema, na constância do matrimónio ocorrem normalmente transferências de valores entre as diferentes massas patrimoniais. “Tais transferências darão origem, no final do matrimónio, a créditos e débitos recíprocos: os patrimónios próprios podem ser credores do comum, este daqueles e os próprios de cada um podem devedores dos próprios do outro.”[6] Mais uma vez, desta forma pretende-se atingir o propósito de equilíbrio patrimonial no final do casamento, salvaguardando, em primeiro lugar, o facto de nenhum dos cônjuges ficar desprotegido ao ponto de estar perante uma situação de pobreza e, em segundo lugar, evitar alguma situação de enriquecimento injusto de um dos cônjuges à custa do outro, já que, no momento da verificação dos patrimónios próprios de cada um e do comum, tem que se evitar situações de injustiça no caso de um se encontrar enriquecido à custa do outro. Neste sentido a opinião M.ª Rita Lobo Xavier.[7]
Não foi esse o entendimento do Presidente da República que considerou que nesta situação estarmos perante uma “… visão «contabilística» do matrimónio…”, considerando ainda que está em contradição com “… a filosofia global do casamento gizada pelo novo regime de divórcio corresponde a uma concepção do casamento como espaço de afecto.” Não se entende muito bem esta posição, dado que apesar de se consagrar o afecto como aspecto fulcral do casamento, este por si não vive de “amor e uma cabana”! De facto a realidade é distinta e quando o afecto termina e as pessoas livremente pretendem pôr cobro ao casamento, não devem estar impedidas de forma racional e consagrada legalmente de acertarem contas entre si, para que dessa forma se evitem as situações de injustiça já anteriormente mencionadas.
O artigo 1676.º n.º 2 do C.C. refere o direito de exigência de uma compensação. A compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime da comunhão. Para haver compensação, tem que haver um “…movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre os patrimónios próprios, haverá um crédito entre os cônjuges, e não uma compensação. Tais créditos entre cônjuges obedecem a um regime jurídico distinto das compensações.”[8]
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[9] têm uma visão distinta, considerando que os créditos entre cônjuges nascem de factos específicos que não se relacionam com as normais transferências de valores entre os patrimónios, com a conta-corrente de financiamentos que as compensações procuram liquidar de forma a evitar enriquecimentos de um património em detrimento de um outro. Para estes podem nascer créditos entre os cônjuges, designadamente por força de responsabilidade civil baseada em actos de administração intencionalmente prejudiciais (art.º 1681.º, n.º 1 C.C.) ou em administração contra a vontade do dono dos bens (art.º 1681.º, n.º 3 C.C.); ou por força de responsabilidade por danos não patrimoniais assente na violação culposa de direitos fundamentais ou do estatuto matrimonial do outro cônjuge; ou ainda por factos jurídicos negociais – mútuos, locações… - sujeitos ao regime geral dos negócios que lhes dão origem. Designar-se-ia por compensações todas as operações todas as operações que visassem restabelecer um desequilíbrio entre patrimónios e reservar-se-ia a expressão “créditos entre cônjuges” para designar os vínculos nascidos por outras razões.
“Não nego a existência de créditos entre os cônjuges naquelas hipóteses. Porém a noção de “créditos entre cônjuges” é, para mim, mais lata que a dos autores citados, pois abrange todo o relacionamento entre patrimónios próprios dos cônjuges, qualquer que seja a sua origem. Miguel López Muñiz Goñi, La ejecución de sentencias em matéria matrimonial. Guía práctica y jurisprudência, 5.ª ed., Madrid, Editorial Colix, 1997, p. 305, apoia esta ideia ao referir que se forem utilizados bens comuns em proveito de um dos cônjuges é a comunhão a credora não se gerando qualquer crédito para o cônjuge prejudicado. Por outro lado, e aí concordo com os autores em causa, não se confundem tais créditos com as compensações, pois enquanto nestas há um relacionamento entre o(s) património(s) do(s) cônjuge(s) e o património comum, naqueles são apenas os patrimónios próprios dos cônjuges que se ligam. V., Cristina M. Araújo Dias, Compensações devidas pelo pagamento das dívidas do casal (da correcção do regime actual), Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 111-129. Parece que também Gernhuber/Coester-Waltjen, Familienrechct, 5.ª Ed., München, C.H. Beck, 2006, 38, VII 15, p. 452, se afastam do entendimento dos autores referidos ao dizerem que, podendo as relações entre o património comum e os patrimónios dos cônjuges ter origens variadas, é possível surgirem relações decorrentes de responsabilidade negocial, como a responsabilidade por facto ilícito ou enriquecimento sem causa. Ora não é o vínculo surgido entre os cônjuges por essas razões que distingue as compensações dos créditos.”[10]
Com o regime actual, conforme já foi analisado, passa a consagrar-se um regime de atribuição de um crédito compensatório, no momento da dissolução do casamento, ao cônjuge que no decurso do casamento haja objectivamente ficado prejudicado e empobrecido por mais ter contribuído para os encargos da vida familiar, eliminando-se também a presunção de renúncia a qualquer compensação.
Para existir atribuição deste crédito compensatório é necessário que haja, em primeiro lugar, uma contribuição, prestada por um dos cônjuges, consideravelmente superior à do outro. É complexo verificar tais situações, mas um exemplo de fácil entendimento é o caso, não pouco vulgar do cônjuge que renunciou à sua vida profissional para se dedicar por inteiro ao lar e à educação dos filhos e que por isso fica objectivamente mais prejudicado. É necessário que a renúncia operada em prol da família e casamento, seja de que forma for, implique sérios prejuízos patrimoniais ao cônjuge.
Porém, como já havíamos referido, tal juízo dependerá da arbitrariedade do juiz em causa dado estarmos perante vários conceitos juridicamente indetermináveis e que em nada contribuem para uma aplicação objectiva da lei. Tal como foi dito pelo Presidente da República sobre a promulgação da lei em discussão, “…artigo 1676.º do Código Civil, padece de graves deficiências técnico-jurídicas e recorre a conceitos indeterminados que suscitam fundadas dúvidas interpretativas, dificultando a sua aplicação pelos tribunais…”.
A questão mais complexa pela sua ambiguidade e inexactidão, crendo mesmo que, em desacordo absoluto com o que se pretende pelo legislador, prende-se com a consagração da expressão renúncia da vida profissional. Levanta uma questão deveras pertinente por não abarcar a letra da lei os casos de cônjuges que, por razões várias (imaginemos uma situação de uma mãe adolescente que por motivos de pressão familiar e social é “empurrada” a emancipar-se pelo casamento e assumir em exclusivo essa tarefa), nunca trabalharam. Esperemos que não existam situações de interpretação literal deixando de contemplar situações como estas.
Em segundo lugar, o crédito de compensação será a favor do cônjuge que se encontra no momento da dissolução do casamento empobrecido, tendo assim direito a um reembolso pelo que contribui em excesso.
Finalmente, o facto desse crédito só poder ser exigido no fim do casamento, como é lógico e desejável, porque poderíamos estar perante uma situação de aumento da conflituosidade entre a vida do casal e porque apenas após o fim do casamento é que poderemos verificar se efectivamente há prejudicados acertando nesse momento “as contas”.
Porém, mais uma vez a lei padece de inexactidões e também nesta matéria a técnica deixou a desejar dado criar-se uma situação de nebulosidade de difícil solução. O direito de crédito em causa não parece, ao contrário da intenção do legislador, um efeito do divórcio, por estar regulado no domínio dos deveres conjugais e não no campo dos efeitos do divórcio, dando assim a impressão que se abre uma porta para que se exija este direito mesmo sem divórcio! A lei determina no art. 1676.º do C.C. que o crédito compensatório só poderá ser exigível no momento da partilha. Pode haver partilha sem divórcio no caso de separação judicial de bens ou a separação decorrente do pagamento de dívidas (consagrado respectivamente nos artigos 1696.º n.º 1 do C.C. e 825. do C.P.C. Parece que assim independentemente do regime de bens em vigor a lei admite essa exigibilidade mesmo sem exigir divórcio.
Acrescenta ainda a lei que “a não ser que vigore o regime de separação”, o que dá também a possibilidade de a qualquer tempo no decurso do matrimónio, que não em regime de comunhão, qualquer cônjuge possa exigir a todo o tempo tal crédito. Assim, também a causa não é efeito do divórcio.
Em suma, não ficou consagrado claramente que essa exigibilidade de créditos e compensações se deve à consequência, de forma clara e expressa, do divórcio. Não ficou assim consagrado um regime autónomo ligado aos efeitos do divórcio criando-se aqui algo de nebuloso e que contribuirá com certeza para situações de conflito e incerteza jurídicas. O sistema jurídico francês, espanhol e alemão por exemplo consagram este instituto de forma autónoma, ou seja, a compensação tem que ser prestada, nas condições análogas já anteriormente analisadas no que respeita aos prejuízos sofridos, como efeito claro do divórcio.
BIBLIOGRAFIA
- M.ª Rita A. G. Lobo Xavier, Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, Coimbra, Almedina, 2000;
- Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1992;
- Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 2008;
- Cristina M. Araújo Dias, Uma Análise do Novo Regime Jurídico do Divórcio, ed. Almedina, 2009;
- António Martins, Presidente da Associação Sindical dos Juízes, in Público, A lei… divorciada da sociedade;
- Gernhuber/Coester-Waltjen, Familienrechct, 5.ª Ed., München, C.H. Beck, 2006, 38, VII 15.
ÍNDICE
I. Introdução ….………………………………………………………………1
II. Análise geral das alterações mais significativas no novo regime jurídico do divórcio ...…………………………………………………….. 2
III. Crédito compensatório ao cônjuge pela contribuição (consideravelmente superior) para os encargos da vida familiar–o trabalho doméstico …………………………………………………….....7
IV. Compensações e créditos entre cônjuges ………………………….… 9
V. Bibliografia ………………………………………………………………. 14
VI. Índice …………………………………………………………………….. 15
Germano Amorim
CP 47680P